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ARTIGO - Navegação Fluvial: Projeto de Hidrovias

  • Writer: Elisa Portela
    Elisa Portela
  • Jul 3
  • 7 min read


O Brasil foi aquinhoado pela natureza em matéria de águas, possuindo algo em torno de 12% de toda a água doce do planeta. E mesmo depois de descontadas as águas não facilmente acessíveis, localizadas nos aquíferos e lençóis freáticos do subsolo, ainda nos destacamos em termos de águas de superfície, pois estão abrigadas no nosso território duas das maiores bacias hidrográficas do planeta e um sistema lagunar de marcada importância.


Dessas duas bacias hidrográficas, uma, a Amazônica, vem a ser a maior do mundo, sendo compartilhada com outros sete países da região². Dos seus cerca de 7 milhões de km², aproximadamente 4 milhões estão situados em terras brasileiras. A outra, denominada Bacia do Prata ou Platina, é a quarta maior do mundo: espalha-se por uma área de 4,3 milhões de km² ao longo de cinco países³, dos quais em torno de 1.397.905 km² encontram-se no Brasil. Seus principais rios, o Paraná, o Paraguai e o Uruguai, todos nascem em território nacional, formando importantes sub-bacias cujas águas findam por desaguar no Rio da Prata.

Ao lado dessas bacias, temos, ainda, o mencionado sistema lagunar de relevância, situado no sul do país, composto por dois principais corpos de água, as lagoas dos Patos e Mirim. A Lagoa dos Patos vem a ser a maior laguna da América do Sul, com 265 quilômetros de comprimento, 60 quilômetros de largura (na sua quota máxima), média de 7 metros de profundidade e uma superfície de 10.144 km². A Lagoa Mirim, mais abaixo, na extremidade sul do país, somente fica atrás da Lagoa dos Patos em extensão, tendo, porém, posição estratégico-logística privilegiada, pois faz fronteira entre o Brasil e o Uruguai. Da sua área total, 2.838 km² estão localizados em território brasileiro, enquanto os restantes 911 km² ficam em espaço uruguaio. As duas lagoas, Patos e Mirim, são interligadas por um canal, o Canal de São Gonçalo.


Porém, a despeito do impressionante porte do conjunto de nossas bacias hidrográficas e lagoas, o fato é que pouco, muito pouco desse potencial hidroviário é explorado. Segundo informações da Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq), o Brasil explora menos da metade de seu potencial hidroviário. O Sistema Nacional de Viação (SNV) registra 42.000 km de rios navegáveis no país, mas menos de 20.000 km são, de fato, utilizados para transporte de cargas e passageiros⁴. Autoridades mencionam que estudos apontam um potencial de cerca de 60.000 km de vias navegáveis⁵.


A navegação nas nossas águas internas mostra-se bastante acanhada quando contrastada com a imensidão das nossas terras interioranas e o comércio que mantemos com os países vizinhos. Realizamos navegação nessas águas sem que, em realidade, na maioria das vezes, possamos chamar as vias navegáveis que são utilizadas de verdadeiras hidrovias, no sentido mais técnico da expressão. Pouquíssimo há de infraestrutura hidroviária que justifique a aplicação dessa denominação ao que existe, com pontuais exceções aqui ou acolá, do que a Hidrovia Tietê-Paraná serve de exemplo. Faltam às vias navegáveis brasileiras, de maneira geral, sinalização náutica moderna e adequada, obras de derrocamento, dragagem, construção de eclusas e atividades de manutenção permanente. A situação é tal que já justificou, certa vez, um jocoso comentário de empresário do setor, ao dizer que, no Brasil, navegamos nos rios somente porque os rios nos deixam navegar…


Mas a despeito desse abandono e indiferença históricos, a navegação por hidrovias interiores vem, ironicamente, nos últimos anos, mostrando um inusitado vigor e avançando significativamente, apesar dos percalços. Apenas para que se tenha ideia e falando tão somente da parte norte do Brasil, a movimentação aquaviária de soja e milho dos portos do chamado Arco Norte⁶ superou a do restante do país. De acordo com dados do Estatístico Aquaviário da Antaq, a movimentação dos portos e dos terminais do Arco Norte foi de 100,8 milhões de toneladas em 2023, contra 88,5 milhões de toneladas no ano anterior. Já a movimentação do restante do Brasil, abaixo do paralelo 16°S, alcançou a marca de 100,2 milhões de toneladas movimentadas, contra 73,4 milhões em 2022⁷. Convém assinalar, ainda, que o Brasil responde, atualmente, por 58% das exportações mundiais de soja e 27% das exportações de milho, conforme dados do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA) divulgados pela Antaq⁸.


É forçoso, pois, reconhecer a necessidade de políticas governamentais robustas para alterarmos a situação de descaso com as hidrovias interiores, essa realidade negativa que só encarece o custo relativo dos produtos e das mercadorias nacionais, os quais demandam melhores e mais eficientes corredores de escoamento, a fim de incrementar sua competitividade. Somos bem menos competitivos do que poderíamos ser devido à nossa dificuldade atávica em compreender as óbvias vantagens das hidrovias interiores para um país com as nossas características geográficas. Temos mantido, do ponto de vista da gestão pública, uma atitude de negação quanto a uma verdade assim tão autoevidente, fechando os olhos às exemplares experiências das estruturas hidroviárias na Europa e dos Estados Unidos, para citar apenas dois parâmetros de absoluto sucesso.


Mas parece que, finalmente, o futuro está batendo à nossa porta, e as autoridades governamentais da presente geração estão dispostas a atender.


Depois de todo o nosso histórico de longo descaso com as hidrovias interiores, segmentos do Governo encabeçados pelo Ministério dos Portos e Aeroportos e pela Antaq, numa significativa guinada de rumo, passaram a atribuir prioridade ao desenvolvimento do setor. Uma série de importantes iniciativas concretas estão a atestar essa mudança de rumo.


Assim, a Antaq lançou, em 25 de outubro de 2023, o Plano Geral de Outorgas Hidroviário (PGO). Esse é o primeiro plano nacional que estabelece diretrizes de concessões para o setor hidroviário. O documento visa estimular a expansão e o desenvolvimento do modal hidroviário no Brasil, ampliar a competitividade e atrair in-vestimentos para hidrovias estratégicas no país. O plano definiu seis hidrovias prioritárias para receber investimentos privados, a saber: as hidrovias do Rio Madeira, Rio Tapajós, Rio Solimões-Amazonas (Barra Norte), Rio Paraguai e as hidrovias do sul, aí compreendidas as vias navegáveis das lagoas Mirim e dos Patos.


Já no dia seguinte, foi publicada, no Diário Oficial da União, chamada pública para recebimento de estudos técnicos visando à concessão da hidrovia do Rio Paraná-Paraguai.


No início do ano de 2024, o Ministério dos Portos e Aeroportos concretizou a criação da Secretaria Nacional de Hidrovias e Transporte Aquaviário, que manterá o foco no desenvolvimento do setor hidroviário. A secretaria ficará responsável pelo orçamento e pela gestão pública dos projetos hidroviários, enquanto o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT), órgão vinculado ao Ministério dos Transportes, ficará incumbido da execução das obras.


Simultaneamente, ainda segundo esse ministério, estão em andamento estudos para Parcerias Público-Privadas (PPPs) nas hidrovias dos rios Madeira, Paraguai e Tocantins e na Lagoa Mirim, além da Barra Norte do Rio Amazonas.


A pasta estima que esses cinco projetos somem mais de R$ 4 bilhões em investimentos. E está projetada, para dezembro de 2024, a abertura do edital para a concessão da Hidrovia do Madeira e da consulta do processo da Hidrovia do Paraguai ao Tribunal de Contas da União (TCU). A consulta ao TCU sobre a concessão da Hidrovia da Lagoa Mirim-Lagoa dos Patos, também conhecida como Hidrovia Brasil-Uruguai, está prevista para setembro do corrente ano, e já conta, inclusive, com a contribuição de um estudo de demanda do lado de lá da fronteira, entregue formalmente pelos parceiros uruguaios à Antaq em dezembro de 2023.


Como se não fosse suficiente, está saltando do papel para entrar no mundo real o derrocamento do Pedral do Lourenço⁹, uma reivindicação histórica do segmento hidroviário da região, que tem como objetivo viabilizar o tráfego contínuo de embarcações e comboios em um trecho de 300 quilômetros de extensão, desde Marabá até a foz do Rio Tocantins. Em 2022, o Ibama emitiu licença prévia para tal empreendimento, com condicionantes para a obtenção da Licença de Instalação (LI). Entre elas está o Diagnóstico Socioambiental Participativo (DSAP)¹⁰, que, atualmente, está em andamento por parte do DNIT. Esse procedimento envolve pesquisas com os moradores locais, ribeirinhos e pescadores, para entender como a obra pode afetar suas vidas, incluindo fonte de renda e o uso do rio na região. Tais informações são cruciais para determinar as ações necessárias a serem implementadas durante a execução da obra. O DNIT anuncia esforços para concluir as etapas necessárias à obtenção da licença de instalação no segundo semestre do corrente ano¹¹. Depois da análise do Ibama, as obras poderão ser iniciadas.


Mas ainda há a derradeira novidade. O Ministério dos Portos prevê, para novembro de 2024, a entrega ao Congresso da “BR dos Rios”, inspirada na análoga “BR do Mar”, anteriormente promulgada. A intenção é que a “BR dos Rios” estabeleça medidas de fomento, desburocratização e parceria com a iniciativa privada, a fim de aumentar a eficiência da navegação hidroviária e atrair investimentos. Realmente, seria a cereja do bolo. A sinalização do raiar de um novo dia para as hidrovias interiores.


Toda essa pauta de medidas e inciativas pelos órgãos competentes tem efetivo potencial para trazer, em prazo relativamente curto, significativas mudanças para a estrutura física e o regime jurídico da navegação hidroviária brasileira.


E nunca é demais lembrar que o tempo está se tornando, por outra razão, progressivamente curto para o Brasil nessa área. As mudanças climáticas chegaram de vez nesses últimos anos, mostrando ao mundo os eventos extremos que a nossa e futuras gerações enfrentarão daqui por diante. E de forma cada vez mais frequente e intensa. A drástica seca que atingiu os rios da Amazônia em 2023 expôs a dramática vulnerabilidade da navegação hidroviária da região.


Há que se trabalhar com urgência, desde logo, para remediar os efeitos de extremos climáticos como o ocorrido. Não há tempo a perder. A hora é agora. Tardar mais é continuar reproduzir o triste passado com suas próprias marcas.



LUÍS FELIPE GALANTE¹ - Advogado

90 ANOS DO TRIBUNAL MARÍTIMO





¹ Mestre em Direito Privado. Coordenador do Curso de Pós-Graduação Lato Sensu em Direito Marítimo da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Membro Titular do Comité Maritime International. Presidente da Associação Brasileira de Direito Marítimo – ABDM. Sócio Sênior do Escritório Jurídico Carbone.
² Bolívia, Colômbia, Guiana, Guiana Francesa, Peru, Suriname e Venezuela.
³ Argentina, Bolívia, Brasil, Paraguai e Uruguai.
⁴ Entrevista concedida à Revista Poder 360 e disponível em https://www.poder360.com.br/infraestrutura/brasil-usa-so-30-de-suas-hidrovias-diz-diretor-da-antaq/.
⁵ Entrevista com o Ministro concedida pelo de Portos e Aeroportos, Silvio Costa Filho à Revista Poder 360 e disponível em https://www.poder360.com.br/infraestrutura/antaq-lanca-plano-nacional-de-outorgas-para-hidrovias/.
⁶ São 7 os portos que compõem o Arco Norte: Porto Velho (RO), Itacoatiara (AM), Santarém (PA), Miritituba (PA), Vila do Conde (PA), Santana (AP) e Itaqui (MA).
⁷ Ver https://www.gov.br/antaq/pt-br/noticias/2024/setor-aquaviario-movimenta-mais-de-1-3-bi-de-toneladas-em-2023-e-registra-recorde-historico.
⁸ Idem.
⁹ Trata-se de formações rochosas localizadas no município de Itupiranga, entre Marabá e Tucuruí. Possuem 43 km de extensão e impedem a navegabilidade dessa parte do rio Tocantins.
¹⁰ Diagnóstico Socioambiental Participativo.
¹¹ Ver em https://www.gov.br/dnit/pt-br/assuntos/noticias/dnit-promove-reunioes-para-esclarecer-sobre-o-projeto-de-derrocamento-do-pedral-do-lourenco-no-para.
 
 

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